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Descanso não é luxo, é necessidade

 
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E aí, descansou? Certeza? Todo fim de temporada do Tecnocracia eu sugiro em tom assertivo usar o recesso de fim de ano para parar e descansar a cabeça. Em 2022 o conselho foi ainda mais assertivo, dado o quão exaustivo foi o ano, tanto do excesso de trabalho como da pedreira emocional com as eleições de maior impacto desde a redemocratização.

A democracia sobreviveu (todos suspiram de alívio) e o segundo semestre produziu material para décadas de dissertações e teses de política, ciência sociais e psiquiatria, mas terminamos o ano em frangalhos. Usamos, logo, o pouco tempo de recesso e as férias que foram se encavalando frente a tanta coisa urgente para parar tudo, sair da rotina, nadar no meio da tarde, passear quilômetros com o cachorro e usar outras partes da cabeça que não as que a rotina se acomoda.

Depois de tanto tempo fazendo sempre tanto e adaptados a rotinas em que o excesso de atividade eliminou a contemplação, como reaprender a não fazer nada? Mergulhados numa cultura que incentiva de forma quase doentia a produtividade até mesmo nos nossos hobbies, como parar e usar o tempo de que dispomos com a cabeça vazia? Perceba que essa noção de produtividade é tão profunda que meu instinto foi usar o verbo “desperdiçar” tempo, trocado por “usar” ao notar a ironia. Essas não são perguntas retóricas e para explicar eu vou lançar mão de uma história pessoal.

Desde que eu comecei a Novelo Data, eu nunca tinha tido férias de verdade. Era, no máximo, uma sequência curta de dias tentando se desconectar e falhando, já que era preciso voltar para programar, fazer reunião, falar com contadora, negociar com cliente… Até que chegamos a fevereiro de 2023. Com a empresa estruturada e uma equipe responsável por mantê-la rodando normalmente, pela primeira vez em anos eu consegui tirar algumas semanas sem me forçar a voltar para completar uma tarefa que exigia a minha presença.

Símbolo máximo do descanso digital, minha imagem do WhatsApp virou uma palavra branca num fundo preto: férias.

Quando se tem dificuldade em parar, é comum o auto-engano de dizer estar descansando enquanto segue-se uma rotina muito parecida com a que te esmigalhou, apenas em menor intensidade. Em vez de longas horas diárias, “só” três ou quatro. Eu mesmo caí nessa armadilha a partir do recesso de fim de ano. Essas três ou quatro horas podem ser bem menos das dez ou onze com as quais você costuma lidar, bonitinho ou bonitinha, mas a queda não significa, necessariamente, descanso. Ainda que fossem duas ou uma, seu cérebro estaria operando na mesma lógica que levou ao cansaço. Poucas horas de produtividade ainda é trabalho, ainda é gasto de energia.

Foi preciso um chacoalhão da terapia para eu entender o auto-engano. Então, lá fui eu descansar. Enquanto arrumava o trabalho (avisava clientes, sócio e fornecedores), havia uma expectativa sobre o que fazer com tantas horas. Essas semanas, pensei eu, serão excelentes para eu arrumar coisas menos prioritárias, profissionais inclusive, que foram ficando pelo caminho pelo excesso de outras tarefas mais urgentes. Listei na minha cabeça essas tarefas, agrupadas por trabalho, saúde e afins.

Legal, mas isso não é descanso. A dificuldade em parar vem também da forma como o inconsciente, confrontado pelo risco de mudança, se adapta para manter a rotina o mais parecida com a anterior possível. Ao perceber esse afã de ser produtivo durante as férias, eu me propus um desafio: não fazer nada. Sem reuniões, entregas e obrigações, o objetivo era voltar minha cabeça para um estado natural de atenção, um “reset”. Sabe quando algo mancha as águas de um rio e o curso da água naturalmente a limpa — desde que a fonte da impureza não persista? Mesma coisa. Meu único objetivo foi não ser produtivo. Qualquer coisa relacionada a trabalho estava proibida. Nenhuma atividade precisaria dar em alguma coisa.

Spoiler: eu não gabaritei. Antes do fim do período que eu havia definido como férias, já estava resolvendo pequenos problemas da empresa. O mundo é complexo, a gente se esforça para tirar a nota mais alta sem a obrigação de ser sempre 10. Você, bonito ou bonita mais atenta, já deve ter percebido que seria uma enorme coincidência um episódio sobre a importância do descanso após as primeiras férias de verdade em anos. A pauta para a quinta temporada do Tecnocracia já estava em termos gerais definida — eu defini os temas sobre os quais quero falar, o que resultou em um número X de episódios para 2023. Alguns devem entrar, outros devem cair, mas a espinha dorsal é essa. Defendo a prática para descobrir a vida, mas você também já notou o quanto eu gosto de teoria. Durante o processo de entender o que é “fazer nada”, entre podcasts, livros e entrevistas1, eu me liguei que o assunto era tão interessante quanto urgente para estrear a quinta temporada. Sim, eu percebi a ironia de, na tentativa de descansar, eu arrumar mais trabalho para mim. De novo: eu descansei, mas não gabaritei. E pelo menos esse é prazeroso.

Então, começaremos a quinta temporada do Tecnocracia falando sobre não fazer nada. Para usar a primeira metáfora do ano, a atenção é um cabide em que a gente vai pendurando uma coisa por vez e segue a vida sem notar a quantidade de coisas penduradas, algumas sem uso há um tempo. Sem parar para checar, a gente carrega tudo sem notar. É uma sensação parecida com quem já fez mudança: você só entende na prática a facilidade humana em acumular badulaques quando percebe a disparidade entre o que você previu e o que você realmente tem que encaixotar.

A quinta temporada também marca uma mudança no Tecnocracia. O podcast continua a pensar alto para entender os efeitos da tecnologia nas nossas vidas como ele é, seja ele positivo ou negativo. Mas a gente vai oficializar algo que já rolava: o alardeado intervalo de 15 dias entre os episódios virou as nossas 72h2. Era tão evidente a ficção que até eu fazia piada com “às vezes um pouco mais, às vezes muito mais” que 15 dias. A gente já é velho o suficiente para parar de fingir ser o que não somos: a partir de agora, o Tecnocracia não tem mais frequência fixa. Eu vou começar a trabalhar no roteiro e, quando achar que estiver pronto, o Ghedin edita, eu gravo e vai ao ar. Mais sobre isso no fim do episódio.

O Tecnocracia está na campanha de financiamento coletivo do Manual do Usuário. A partir de R$ 16 por mês, você participa do grupo fechado no Telegram e ganha seus adesivos do podcast. Se quiser apoiar, visite manualdousuario.net/apoie.

Feito o anúncio da novidade, comecemos oficialmente com uma consideração. Se você veio pelas dicas práticas, a Luciana Gimenez tem “bad news”: por mais que lá no fim a gente aborde uma ou outra coisa, este não é um guia. Se você precisa de uma forma mais urgente para entender como fazer nada (ah, a produtividade em todos os cantinhos da vida…), baixa o aplicativo Headspace: a meditação tem, entre tantos objetivos, nos arrancar daquela torrente infinita de impulsos, sentimentos e pensamentos que, não gerenciados corretamente, sequestram nossa atenção. Fora dessa torrente, voltamos a um estado relaxado, porém atento, em que você percebe as distrações, mas não necessariamente interage ou embarca nelas, tal qual o sujeito que, sentado na margem, é capaz de sentir a correnteza do rio sem se deixar arrastar por ela.

O ponto aqui é que não adianta ter um plano completo para limpar uma cabeça entulhada e descansar se, racionalmente, a teoria não é internalizada. Corre-se o risco de repetir no dia a dia a armadilha do sujeito que, nas décadas de 1980 e 1990, comprava uma bicicleta ergométrica, pedalava como se fosse o Eddy “O Canibal” Merckx, nas primeiras semanas para, aos pouquinhos, perder o interesse até a bicicleta virar um cabide onde roupas usadas vão ficar penduradas3 até que, anos depois, você resolve encarar a realidade e vender aquilo.

Comecemos a encarar o fazer nada dando dois passinhos para trás: historicamente, a percepção que a sociedade tem sobre descanso mudou radicalmente. Durante séculos, ainda que tenha sofrido variações em diferentes culturas, o descanso era de maneira geral visto como um presente, algo a ser desfrutado.

Abre as primeiras aspas da quinta temporada para um texto muito interessante na revista online Psyche, escrito pelo Alex Soojung-Kim Pang, autor do livro Rest e fundador de uma consultoria que ajuda empresas a implementarem semanas de trabalho de quatro dias:

Para Aristóteles, o trabalho era tanto uma droga quanto uma necessidade; apenas no descanso poderíamos cultivar nossas habilidades mentais e morais, e, assim, nos tornarmos pessoas melhores. No livro O Schabat: Seu significado para o homem moderno [editado no Brasil pela Perspectiva], o rabino Abraham Heschel argumenta que, no Judaísmo, este dia de descanso era mais do que uma pausa na semana, era um “palácio no tempo feito de alma, diversão e reticência”. Mesmo para os menos inclinados filosoficamente, o descanso forneceu o tempo e a liberdade para fazer o que amavam. Quando George Washington se aposentou da vida pública em 1759, ele mergulhou na construção e manutenção do Mount Vernon, um empreendimento que, de acordo com o historiador William Abbot, “teve um impacto mais forte e duradouro do que a guerra ou a política”.

Washington comandou as tropas que tornaram os Estados Unidos independentes da Inglaterra e foi o primeiro presidente do país.

Essa é uma conversa que tem relação direta com a popularidade da tecnologia nas nossas vidas. Ter um espaço fixo onde você desempenhava seu trabalho — uma fábrica, digamos — significava que, assim que o apito soava, o tempo dedicado ao trabalho se encerrava. Não que o trabalho na fábrica fosse uma maravilha: os ainda incipientes direitos trabalhistas a partir da Revolução Industrial permitiam, entre alguns descalabros, jornadas quase infinitas, crianças trabalhando, atividades perigosas sem equipamentos de segurança e o contato com produtos comprovadamente prejudiciais à saúde humana. A popularização de ferramentas de comunicação e o crescente naco que o trabalho intelectual ocupa no PIB global nos fez entrar na Revolução do Conhecimento, algo que o Sapiens já explicou muito bem. A possibilidade de trabalhar em qualquer lugar foi, aos poucos, corroendo os limites do expediente no dia a dia e fazendo com que o trabalho escorresse para todo o nosso tempo acordados.

O movimento é ainda mais perverso já que a entrada em cena da economia da influência fez com que hobbies e momentos de relaxamento se transformassem em potenciais carreiras, o que acabou introjetando a neurose da produtividade nas mesmas atividades que deveriam nos blindar das preocupações do trabalho. Nossos dias hoje são compostos por 24 horas potencialmente monetizáveis nas quais cada indivíduo é visto como um empreendedor, como explica a Jenny Odell, artista que escreveu o livro How to do nothing sobre — acertou — como não fazer nada. Abre aspas:

Em uma situação em que qualquer momento acordado se tornou o tempo no qual construímos nossa vida e no qual submetemos até nosso lazer à avaliação numérica por curtidas no Facebook e no Instagram, verificando constantemente seu desempenho como alguém verifica uma ação, monitorando o desenvolvimento da nossa marca pessoal, o tempo se tornou um recurso econômico que não podemos mais gastar em nada. Ele não resulta em ROI. É simplesmente muito caro. Essa é uma cruel confluência de tempo e espaço. Assim como perdemos nossos espaços não-comerciais, nós também vemos todo o nosso tempo e as nossas ações como potencialmente comerciais.

Esse “descanso freemium”, como ela define, subverte e neutraliza sua razão primordial — ao se tornar quantificável e potencialmente lucrativo, ele deixa de ser descanso.

Tecnologias mudam culturas, como já falamos aqui algumas vezes, e esse derretimento ajudou a alterar completamente a forma como a gente encara o descanso. Essa cultura empreendedora neoliberal, do “estude enquanto eles dormem” e “tempo é dinheiro”, encara o descanso quase como uma fraqueza, uma imoralidade, “um espaço negativo definido pela falta de trabalho”, como bem definiu a Psyche. Regidos pelo aforismo do “tempo é dinheiro”, fazer nada significa rasgar dinheiro.

Então quebra-se todas as paredes que separam as várias partes da nossa vida para que o trabalho ocupe a vida inteira. Da nobreza conferida pelo Aristóteles, o descanso se transformou no antagonista de um dos objetivos mais valorizados atualmente: a compulsão em auto-aprimoramento. É fundamental aumentarmos nossas capacidades, ninguém discute isso. Mas o auto-aprimoramento tem um limite. Após esse limite, vira uma paranoia, uma historinha que a gente conta sem refletir a realidade. Você se pressiona para aprender, construir, produzir sem fazê-lo. O motor fundiu e você ainda pisa fundo no acelerador.

Você talvez tenha se lembrado do filósofo alemão Byung-Chul Han e seu conceito de “sociedade do desempenho” explicado no best seller homônimo. Nós falamos sobre o Han no Tecnocracia #22, sobre a incrível estupidez da geração que glamouriza o excesso de trabalho. Os dois episódios, o 22 e este que você está ouvindo, abordam um mesmo problema sob dois pontos de vista:

  1. Segundo Han, crente da necessidade de esforços sobre-humanos e constantes, nossa psique cria um robô autônomo de opressão profissional que, por sua vez, domina todas as horas do dia com trabalho. Essa é a parte ativa, a do avanço das tropas.
  2. Do outro lado está o descanso, a hora de recarregar as baterias, o tão fundamental suspiro. Com a tropa avançando e taxado de ineficiente, ele é o primeiro sacrificado. Entender isso é o primeiro passo para transformar o descanso na sua própria tropa e reconquistar esses espaços. E você pode estranhar o linguajar bélico aqui, mas, por mais contraditório que pareça, descanso é tão importante que merece o mínimo de ação para mantê-lo, para não desmantelá-lo.

O combate à neurose do trabalho não é uma coisa nova. O livro da Jenny Odell foi escrito e entrou para a lista dos mais vendidos do jornal New York Times em 2019. Décadas antes, o assunto já tinha sido alvo de análise por filósofos tradicionalmente dedicados a outros assuntos. Bertrand Russell é a definição clássica de um intelectual. O galês era filósofo, matemático, ensaísta, historiador e seu trabalho é considerado influente até hoje em campos como aprendizado de máquina, ciência cognitiva, filosofias da linguagem e da matemática, epistemologia e metafísica. Um sujeito que escreveu tanto em vida, você deve pensar, era incapaz de parar de trabalhar. Não necessariamente.

Em 1932, Russell escreveu um curto ensaio para a Harper’s Magazine, ainda disponível de graça online, chamado In praise of idleness (“Louvando o ócio”, em tradução livre). O ensaio começa com uma pedrada com a qual, talvez, você se identifique:

Como a maioria da minha geração, eu cresci sob o ditado do “cabeça vazia, oficina do diabo” 4. Sendo uma criança virtuosa, acreditei em tudo isso e adquiri a consciência que me manteve trabalhando pesado até o momento. Mas, ainda que minha consciência tenha controlado minhas ações, minhas opiniões passaram por uma revolução. Eu acho que existe muito trabalho feito no mundo, que imensos danos são causados pela crença de que o trabalho é virtuoso e que o que precisa ser ensinado em países industriais modernos é bem diferente do que sempre foi ensinado.

Vamos lembrar que Russell publicou o ensaio em 1932: a Segunda Guerra ainda estava a anos de começar, os Estados Unidos ainda não tinham assumido a posição geopolítica e econômica que têm no mundo, a indústria era o que movia a economia e a tecnologia de comunicação mais avançada era o telefone — as chamadas intercontinentais estrearam cinco anos antes. Imagine o que escreveria Russell se conhecesse o atual trabalho de qualquer lugar a qualquer hora e a cultura tóxica do empreendedorismo que domina o LinkedIn.

O sujeito que trabalhou enormemente e cujo trabalho continua até hoje como base de diferentes campos do pensamento humano é categórico:

Descanso é essencial para a civilização e em tempos antigos para que o descanso de poucos fosse possível eram necessário o trabalho de muitos. Mas seus trabalhos eram valiosos, não porque o trabalho é bom, mas porque o descanso é bom. E com as técnicas de produção modernas, seria possível distribuir o descanso justamente sem machucar a civilização. […] O uso sábio do descanso, devemos conceder, é produto da civilização e da educação. Um homem que trabalhou longas horas toda sua vida ficará entediado se se tornar subitamente ocioso. Mas sem uma quantidade considerável de descanso um homem é privado de muitas das melhores coisas da vida. Não existe mais razão para que a maior parte da população sofra desta privação. Só um ascetismo tolo, geralmente vicário, nos faz insistir em trabalhar em excesso agora que a necessidade não existe mais.

A essência segue valendo, 91 anos depois.

Décadas adiante, um outro filósofo europeu voltou ao tema, dessa vez com uma definição que resvala em um ponto bem comum hoje. Em 1990, a editora da Universidade de Columbia compilou no livro Negotiations, ensaios escritos pelo filósofo francês Gilles Deleuze entre 1972 e 1990. Um deles diz o seguinte:

Nós às vezes seguimos a vida como se as pessoas não pudessem se expressar. Na verdade, elas estão sempre se expressando. […] O rádio e a televisão espalharam este espírito para todo lugar e estamos mergulhados em conversas sem sentido, quantidades imensas de palavras e imagens. A estupidez nunca é cega ou muda. Então o problema não é que as pessoas se expressem, mas encontrar pequenos espaços de solitude e silêncio nos quais eles podem eventualmente encontrar algo a dizer. Forças repressivas não impedem as pessoas de se expressarem, mas, ao contrário, as forçam. Que alívio não ter nada a dizer, o direito de dizer nada, porque só aí existe a chance de encontrar a cada vez mais rara coisa que vale a pena ser dita. A praga que nos cerca hoje não é o bloqueio da comunicação, mas colocações sem sentido.

Tenho para mim que a frase do Deleuze não foi escrita para a comunicação mediada pela internet — vide a janela temporal da compilação de ensaios —, mas é incrível como ela se encaixa perfeitamente no atual estado da sociedade. A frase, apontada no livro da Jenny Odell sobre não fazer nada, se conecta perfeitamente com um outro ponto que é a antítese da tecnologia: a tradição.

Várias religiões têm o conceito do Sabbath, um dia de descanso que deve ser dedicado à meditação religiosa e onde não se deve trabalhar. No judaísmo, o Sabbath é observado da noite de sexta-feira à noite de sábado. Para os católicos, é no domingo. Variações do mesmo conceito, sob diferentes alcunhas, podem ser observadas em outras religiões também. Vamos lembrar que o descanso é tão fundamental que até Ele (em caixa alta) descansou após criar o mundo. Gênesis 2:2:

Pelo sétimo dia, Deus tinha terminado o trabalho que vinha fazendo; então no sétimo dia, ele descansou de todo seu trabalho.

Não é a única menção à importância do descanso na Bíblia: “Lembra-te do dia de sábado e guarda-o santo” (e variações do texto, segundo a edição da Bíblia ou da Torá) é um dos Dez Mandamentos.

Uma das melhores explicações sobre o conceito caiu na minha mão por uma dessas enormes coincidências da vida. Dias antes de eu entrar nas minhas férias descobri a entrevista que o Ezra Klein fez com a jornalista norte-americana Judith Shulevitz, autora do livro The Sabbath world (sem edição no Brasil). A entrevista é longa e eu te aconselho a ouvir se o assunto descanso te interessa. Abre aspas para a Shulevitz:

A forma rabínica tradicional de explicar (o Sabbath) é que existem uma série de regras — de um tipo de trabalho que você não faz já que esse tipo de trabalho está agindo sobre o mundo. E o Sabbath é um momento em que você deve parar de agir sobre o mundo. Você deve parar de fazer coisas para construir coisas. Você deve deixar o mundo descansar, assim como você.

Independente da sua inclinação religiosa, me surpreende o contraste entre o moderno e o tradicional. Como o segundo, potencialmente encarado como radical por gente que não segue o dogma, acabou virando um potencial antídoto para os exageros trazidos pelo primeiro.

A ideia da Shulevitz, de deixar tanto o mundo como você descansarem, tem reaparecido há semanas na minha cabeça. É o freio de arrumação necessário para ajudar a entender a quantidade de tarefas, culpas, cobranças e frustrações que carregamos sem perceber, a lista enorme de processos rodando ao mesmo tempo na sua cabeça, se formos fazer uma metáfora computacional5. Há um enorme perigo em se colocar numa situação onde você não percebe uma saída. Da onde você não consegue parar. A base do burnout é ficar preso na impressão de trabalho — real ou projetada. O grande perigo de encarar o descanso como luxo é encarar a sensação de esgotamento como o normal, como rotina. E estar cansado é um dos piores momentos para tomar decisões — assim como quando você bebeu demais, está com fome, desesperado, com frio…

O cansaço também te afasta do que você é, dos seus gostos, seus interesses, suas vontades, o que te dá tesão. Tudo isso vira uma massaroca amorfa frente à necessidade urgente de — e a relutância em — parar. É um pêndulo: você precisa desesperadamente, mas você mesmo é incapaz de ver, bonito e bonita. Essa massaroca composta por prazos e uma sensação constante de estar atrasado, devendo, em falta, soterra também o desejo, o tesão em fazer o que você faz profissionalmente. Está achando esse papinho kombucha de romã demais? Ainda é difícil abrir mão da paranoia da produtividade? Então entenda que descansar é uma forma de voltar a ser produtivo ao trocar aquela sensação de obrigação pelo reencontro com a criatividade.

Isso quer dizer que as horas de folga precisam ser criativas? Não necessariamente. A corrente encabeçada pelo Domenico de Masi e seu best-seller homônimo pode ser um caminho, mas não está escrita na pedra. Você pode tranquilamente ficar horas olhando pro céu sem qualquer expectativa. Agora deve ser muito difícil. Mas os resultados são excelentes.

A gente falou muito em teoria. Tentemos falar na prática. Parafraseando um dos melhores livros do Drummond, ler ou ouvir sobre descanso talvez não seja a melhor forma de praticá-lo. Descansar só se aprende descansando. O que eu espero é que esses minutos até agora sirvam como um empurrão para o reconhecimento da importância da folga.

Existem incontáveis guias práticos6 que usam, em maior ou menor grau, a lógica da meditação para quebrar as inércias e te fazer redescobrir o relaxamento. Até mesmo no Tecnocracia a gente já falou sobre isso — o episódio #41 tem o título literal “Manual prático para retomar sua atenção do calabouço das redes sociais”. Estão lá um caminho bastante prático para compartimentalizar as horas de trabalho e prazer, a premissa do Carl Newport no livro Trabalho focado de que a atenção, tal qual seu bíceps, é um músculo e precisa ser treinada, o afastamento do fluxo constante e prejudicial de histeria e raiva das redes sociais e sua substituição pelo contato com a beleza em diferentes formatos, um mínimo de cinco minutos de meditação por dia… Retomar a atenção é também uma forma para abrir espaço na cabeça para, entre tantas coisas, descansar. Se você não achar este guia bom, sem problema: existem centenas online.

Na reportagem da Psyche, Alex Soojung-Kim Pang traz alguns pontos de atenção importantes: estabelecer e, principalmente, respeitar limites claros entre o que é trabalho e o que é vida pessoal, tratar descanso como uma habilidade a ser melhorada, não ignorar sonecas e horas de sono profundo, estabelecer um “descanso profundo” e encorajar outras pessoas a descansarem contigo.

Definir os limites parece ser a dica fundamental: descansar exige um esforço de definir horas em que você veta da sua cabeça qualquer preocupação profissional. Não é fácil no começo. Observe suas horas livres. Observe se elas existem e, se sim, no que você as dedica. É muito fácil estar com a cabeça livre e automaticamente sua atenção ir em direção às tretas de trabalho, o funcionário que precisa melhorar, a proposta a ser formulada, o que você deve à equipe de design, as contas do próximo ano… É por isso que eu tenho certeza que navegar por redes sociais não é descanso — você ainda vai estar preso àquela nova obrigação de projeção e personagem que a Jenny Odell explicou no livro dela.

Descanso bom de verdade funciona como um rompimento do estado mental onde você está, uma área nova da cabeça a ser explorada sem muitos indícios daquela torrente contínua de preocupações, paranóias, planos práticos. É difícil explicar em palavras, mas, quando ela vem, é moleza reconhecê-la.

Determinadas atividades, com certeza, conseguem te arrancar dessa neurose de produtividade e te colocar num estado de serenidade, relaxamento. Talvez você já saiba, talvez precise descobrir. Se você estiver tendo dificuldade para descobrir, não tenha vergonha de buscar ajuda profissional. Às vezes a dificuldade de parar é reflexo de uma outra dor sem relação com o trabalho. Falar ajuda, tomar remédio ajuda. Se quiser um exemplo prático para te ajudar a pensar na questão: uma coisa que funciona muito bem para mim é alongamento. Não tem preocupação de trabalho que sobreviva àquele músculo de trás da coxa queimando. Fora isso, você marca uma das caixinhas para envelhecer com saúde: ter um corpo forte e flexível.

Por fim, existem poucas coisas no mundo que exigem sua atenção total por horas a fio sob o risco de graves consequências. É bem provável que o que você faz não é uma dessas coisas — você não está fazendo um transplante de coração agora7. Dá tempo de parar e relaxar. Quase nada é tão urgente que você não possa folgar.

Descanso não é luxo. Você não precisa ganhar o direito de tê-lo. Descanso é necessidade. Você precisa dele para ser você. Por isso mesmo que é fundamental trocar o verbo conjugado ao se pensar em descanso do “merecer” para o “precisar”. Repetindo o fim de todas as temporadas do Tecnocracia no começo desta: vai descansar. Mas de verdade.

Exatamente pelo ano que foi 2022, eu vou descansar mais em 2023. A gente volta quando o próximo episódio estiver pronto.

Pintura do topo: “Jovem adormecida” de Pinto Bandeira (1901).

  1. E eu tenho plena consciência de que para entender algo você precisa fazer coisas, o que desmonta a premissa original.
  2. Dois mil e vinte e dois não vai sair da gente tão cedo.
  3. Deixar roupa em algum lugar pela preguiça de pendurar parece ser um motivo desse episódio também.
  4. Nota do tradutor: aqui eu abrasileirei, já que a versão nacional é bastante semelhante à britânica (“Satan finds some mischief still for idle hands to do”), ainda que menos elegante.
  5. Esse ainda é um podcast que entra na categoria tecnologia, né?
  6. Não o podcast homônimo da casa.
  7. Pelo menos, eu espero que não.

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A democracia sobreviveu (todos suspiram de alívio) e o segundo semestre produziu material para décadas de dissertações e teses de política, ciência sociais e psiquiatria, mas terminamos o ano em frangalhos. Usamos, logo, o pouco tempo de recesso e as férias que foram se encavalando frente a tanta coisa urgente para parar tudo, sair da rotina, nadar no meio da tarde, passear quilômetros com o cachorro e usar outras partes da cabeça que não as que a rotina se acomoda.

Depois de tanto tempo fazendo sempre tanto e adaptados a rotinas em que o excesso de atividade eliminou a contemplação, como reaprender a não fazer nada? Mergulhados numa cultura que incentiva de forma quase doentia a produtividade até mesmo nos nossos hobbies, como parar e usar o tempo de que dispomos com a cabeça vazia? Perceba que essa noção de produtividade é tão profunda que meu instinto foi usar o verbo “desperdiçar” tempo, trocado por “usar” ao notar a ironia. Essas não são perguntas retóricas e para explicar eu vou lançar mão de uma história pessoal.

Desde que eu comecei a Novelo Data, eu nunca tinha tido férias de verdade. Era, no máximo, uma sequência curta de dias tentando se desconectar e falhando, já que era preciso voltar para programar, fazer reunião, falar com contadora, negociar com cliente… Até que chegamos a fevereiro de 2023. Com a empresa estruturada e uma equipe responsável por mantê-la rodando normalmente, pela primeira vez em anos eu consegui tirar algumas semanas sem me forçar a voltar para completar uma tarefa que exigia a minha presença.

Símbolo máximo do descanso digital, minha imagem do WhatsApp virou uma palavra branca num fundo preto: férias.

Quando se tem dificuldade em parar, é comum o auto-engano de dizer estar descansando enquanto segue-se uma rotina muito parecida com a que te esmigalhou, apenas em menor intensidade. Em vez de longas horas diárias, “só” três ou quatro. Eu mesmo caí nessa armadilha a partir do recesso de fim de ano. Essas três ou quatro horas podem ser bem menos das dez ou onze com as quais você costuma lidar, bonitinho ou bonitinha, mas a queda não significa, necessariamente, descanso. Ainda que fossem duas ou uma, seu cérebro estaria operando na mesma lógica que levou ao cansaço. Poucas horas de produtividade ainda é trabalho, ainda é gasto de energia.

Foi preciso um chacoalhão da terapia para eu entender o auto-engano. Então, lá fui eu descansar. Enquanto arrumava o trabalho (avisava clientes, sócio e fornecedores), havia uma expectativa sobre o que fazer com tantas horas. Essas semanas, pensei eu, serão excelentes para eu arrumar coisas menos prioritárias, profissionais inclusive, que foram ficando pelo caminho pelo excesso de outras tarefas mais urgentes. Listei na minha cabeça essas tarefas, agrupadas por trabalho, saúde e afins.

Legal, mas isso não é descanso. A dificuldade em parar vem também da forma como o inconsciente, confrontado pelo risco de mudança, se adapta para manter a rotina o mais parecida com a anterior possível. Ao perceber esse afã de ser produtivo durante as férias, eu me propus um desafio: não fazer nada. Sem reuniões, entregas e obrigações, o objetivo era voltar minha cabeça para um estado natural de atenção, um “reset”. Sabe quando algo mancha as águas de um rio e o curso da água naturalmente a limpa — desde que a fonte da impureza não persista? Mesma coisa. Meu único objetivo foi não ser produtivo. Qualquer coisa relacionada a trabalho estava proibida. Nenhuma atividade precisaria dar em alguma coisa.

Spoiler: eu não gabaritei. Antes do fim do período que eu havia definido como férias, já estava resolvendo pequenos problemas da empresa. O mundo é complexo, a gente se esforça para tirar a nota mais alta sem a obrigação de ser sempre 10. Você, bonito ou bonita mais atenta, já deve ter percebido que seria uma enorme coincidência um episódio sobre a importância do descanso após as primeiras férias de verdade em anos. A pauta para a quinta temporada do Tecnocracia já estava em termos gerais definida — eu defini os temas sobre os quais quero falar, o que resultou em um número X de episódios para 2023. Alguns devem entrar, outros devem cair, mas a espinha dorsal é essa. Defendo a prática para descobrir a vida, mas você também já notou o quanto eu gosto de teoria. Durante o processo de entender o que é “fazer nada”, entre podcasts, livros e entrevistas1, eu me liguei que o assunto era tão interessante quanto urgente para estrear a quinta temporada. Sim, eu percebi a ironia de, na tentativa de descansar, eu arrumar mais trabalho para mim. De novo: eu descansei, mas não gabaritei. E pelo menos esse é prazeroso.

Então, começaremos a quinta temporada do Tecnocracia falando sobre não fazer nada. Para usar a primeira metáfora do ano, a atenção é um cabide em que a gente vai pendurando uma coisa por vez e segue a vida sem notar a quantidade de coisas penduradas, algumas sem uso há um tempo. Sem parar para checar, a gente carrega tudo sem notar. É uma sensação parecida com quem já fez mudança: você só entende na prática a facilidade humana em acumular badulaques quando percebe a disparidade entre o que você previu e o que você realmente tem que encaixotar.

A quinta temporada também marca uma mudança no Tecnocracia. O podcast continua a pensar alto para entender os efeitos da tecnologia nas nossas vidas como ele é, seja ele positivo ou negativo. Mas a gente vai oficializar algo que já rolava: o alardeado intervalo de 15 dias entre os episódios virou as nossas 72h2. Era tão evidente a ficção que até eu fazia piada com “às vezes um pouco mais, às vezes muito mais” que 15 dias. A gente já é velho o suficiente para parar de fingir ser o que não somos: a partir de agora, o Tecnocracia não tem mais frequência fixa. Eu vou começar a trabalhar no roteiro e, quando achar que estiver pronto, o Ghedin edita, eu gravo e vai ao ar. Mais sobre isso no fim do episódio.

O Tecnocracia está na campanha de financiamento coletivo do Manual do Usuário. A partir de R$ 16 por mês, você participa do grupo fechado no Telegram e ganha seus adesivos do podcast. Se quiser apoiar, visite manualdousuario.net/apoie.

Feito o anúncio da novidade, comecemos oficialmente com uma consideração. Se você veio pelas dicas práticas, a Luciana Gimenez tem “bad news”: por mais que lá no fim a gente aborde uma ou outra coisa, este não é um guia. Se você precisa de uma forma mais urgente para entender como fazer nada (ah, a produtividade em todos os cantinhos da vida…), baixa o aplicativo Headspace: a meditação tem, entre tantos objetivos, nos arrancar daquela torrente infinita de impulsos, sentimentos e pensamentos que, não gerenciados corretamente, sequestram nossa atenção. Fora dessa torrente, voltamos a um estado relaxado, porém atento, em que você percebe as distrações, mas não necessariamente interage ou embarca nelas, tal qual o sujeito que, sentado na margem, é capaz de sentir a correnteza do rio sem se deixar arrastar por ela.

O ponto aqui é que não adianta ter um plano completo para limpar uma cabeça entulhada e descansar se, racionalmente, a teoria não é internalizada. Corre-se o risco de repetir no dia a dia a armadilha do sujeito que, nas décadas de 1980 e 1990, comprava uma bicicleta ergométrica, pedalava como se fosse o Eddy “O Canibal” Merckx, nas primeiras semanas para, aos pouquinhos, perder o interesse até a bicicleta virar um cabide onde roupas usadas vão ficar penduradas3 até que, anos depois, você resolve encarar a realidade e vender aquilo.

Comecemos a encarar o fazer nada dando dois passinhos para trás: historicamente, a percepção que a sociedade tem sobre descanso mudou radicalmente. Durante séculos, ainda que tenha sofrido variações em diferentes culturas, o descanso era de maneira geral visto como um presente, algo a ser desfrutado.

Abre as primeiras aspas da quinta temporada para um texto muito interessante na revista online Psyche, escrito pelo Alex Soojung-Kim Pang, autor do livro Rest e fundador de uma consultoria que ajuda empresas a implementarem semanas de trabalho de quatro dias:

Para Aristóteles, o trabalho era tanto uma droga quanto uma necessidade; apenas no descanso poderíamos cultivar nossas habilidades mentais e morais, e, assim, nos tornarmos pessoas melhores. No livro O Schabat: Seu significado para o homem moderno [editado no Brasil pela Perspectiva], o rabino Abraham Heschel argumenta que, no Judaísmo, este dia de descanso era mais do que uma pausa na semana, era um “palácio no tempo feito de alma, diversão e reticência”. Mesmo para os menos inclinados filosoficamente, o descanso forneceu o tempo e a liberdade para fazer o que amavam. Quando George Washington se aposentou da vida pública em 1759, ele mergulhou na construção e manutenção do Mount Vernon, um empreendimento que, de acordo com o historiador William Abbot, “teve um impacto mais forte e duradouro do que a guerra ou a política”.

Washington comandou as tropas que tornaram os Estados Unidos independentes da Inglaterra e foi o primeiro presidente do país.

Essa é uma conversa que tem relação direta com a popularidade da tecnologia nas nossas vidas. Ter um espaço fixo onde você desempenhava seu trabalho — uma fábrica, digamos — significava que, assim que o apito soava, o tempo dedicado ao trabalho se encerrava. Não que o trabalho na fábrica fosse uma maravilha: os ainda incipientes direitos trabalhistas a partir da Revolução Industrial permitiam, entre alguns descalabros, jornadas quase infinitas, crianças trabalhando, atividades perigosas sem equipamentos de segurança e o contato com produtos comprovadamente prejudiciais à saúde humana. A popularização de ferramentas de comunicação e o crescente naco que o trabalho intelectual ocupa no PIB global nos fez entrar na Revolução do Conhecimento, algo que o Sapiens já explicou muito bem. A possibilidade de trabalhar em qualquer lugar foi, aos poucos, corroendo os limites do expediente no dia a dia e fazendo com que o trabalho escorresse para todo o nosso tempo acordados.

O movimento é ainda mais perverso já que a entrada em cena da economia da influência fez com que hobbies e momentos de relaxamento se transformassem em potenciais carreiras, o que acabou introjetando a neurose da produtividade nas mesmas atividades que deveriam nos blindar das preocupações do trabalho. Nossos dias hoje são compostos por 24 horas potencialmente monetizáveis nas quais cada indivíduo é visto como um empreendedor, como explica a Jenny Odell, artista que escreveu o livro How to do nothing sobre — acertou — como não fazer nada. Abre aspas:

Em uma situação em que qualquer momento acordado se tornou o tempo no qual construímos nossa vida e no qual submetemos até nosso lazer à avaliação numérica por curtidas no Facebook e no Instagram, verificando constantemente seu desempenho como alguém verifica uma ação, monitorando o desenvolvimento da nossa marca pessoal, o tempo se tornou um recurso econômico que não podemos mais gastar em nada. Ele não resulta em ROI. É simplesmente muito caro. Essa é uma cruel confluência de tempo e espaço. Assim como perdemos nossos espaços não-comerciais, nós também vemos todo o nosso tempo e as nossas ações como potencialmente comerciais.

Esse “descanso freemium”, como ela define, subverte e neutraliza sua razão primordial — ao se tornar quantificável e potencialmente lucrativo, ele deixa de ser descanso.

Tecnologias mudam culturas, como já falamos aqui algumas vezes, e esse derretimento ajudou a alterar completamente a forma como a gente encara o descanso. Essa cultura empreendedora neoliberal, do “estude enquanto eles dormem” e “tempo é dinheiro”, encara o descanso quase como uma fraqueza, uma imoralidade, “um espaço negativo definido pela falta de trabalho”, como bem definiu a Psyche. Regidos pelo aforismo do “tempo é dinheiro”, fazer nada significa rasgar dinheiro.

Então quebra-se todas as paredes que separam as várias partes da nossa vida para que o trabalho ocupe a vida inteira. Da nobreza conferida pelo Aristóteles, o descanso se transformou no antagonista de um dos objetivos mais valorizados atualmente: a compulsão em auto-aprimoramento. É fundamental aumentarmos nossas capacidades, ninguém discute isso. Mas o auto-aprimoramento tem um limite. Após esse limite, vira uma paranoia, uma historinha que a gente conta sem refletir a realidade. Você se pressiona para aprender, construir, produzir sem fazê-lo. O motor fundiu e você ainda pisa fundo no acelerador.

Você talvez tenha se lembrado do filósofo alemão Byung-Chul Han e seu conceito de “sociedade do desempenho” explicado no best seller homônimo. Nós falamos sobre o Han no Tecnocracia #22, sobre a incrível estupidez da geração que glamouriza o excesso de trabalho. Os dois episódios, o 22 e este que você está ouvindo, abordam um mesmo problema sob dois pontos de vista:

  1. Segundo Han, crente da necessidade de esforços sobre-humanos e constantes, nossa psique cria um robô autônomo de opressão profissional que, por sua vez, domina todas as horas do dia com trabalho. Essa é a parte ativa, a do avanço das tropas.
  2. Do outro lado está o descanso, a hora de recarregar as baterias, o tão fundamental suspiro. Com a tropa avançando e taxado de ineficiente, ele é o primeiro sacrificado. Entender isso é o primeiro passo para transformar o descanso na sua própria tropa e reconquistar esses espaços. E você pode estranhar o linguajar bélico aqui, mas, por mais contraditório que pareça, descanso é tão importante que merece o mínimo de ação para mantê-lo, para não desmantelá-lo.

O combate à neurose do trabalho não é uma coisa nova. O livro da Jenny Odell foi escrito e entrou para a lista dos mais vendidos do jornal New York Times em 2019. Décadas antes, o assunto já tinha sido alvo de análise por filósofos tradicionalmente dedicados a outros assuntos. Bertrand Russell é a definição clássica de um intelectual. O galês era filósofo, matemático, ensaísta, historiador e seu trabalho é considerado influente até hoje em campos como aprendizado de máquina, ciência cognitiva, filosofias da linguagem e da matemática, epistemologia e metafísica. Um sujeito que escreveu tanto em vida, você deve pensar, era incapaz de parar de trabalhar. Não necessariamente.

Em 1932, Russell escreveu um curto ensaio para a Harper’s Magazine, ainda disponível de graça online, chamado In praise of idleness (“Louvando o ócio”, em tradução livre). O ensaio começa com uma pedrada com a qual, talvez, você se identifique:

Como a maioria da minha geração, eu cresci sob o ditado do “cabeça vazia, oficina do diabo” 4. Sendo uma criança virtuosa, acreditei em tudo isso e adquiri a consciência que me manteve trabalhando pesado até o momento. Mas, ainda que minha consciência tenha controlado minhas ações, minhas opiniões passaram por uma revolução. Eu acho que existe muito trabalho feito no mundo, que imensos danos são causados pela crença de que o trabalho é virtuoso e que o que precisa ser ensinado em países industriais modernos é bem diferente do que sempre foi ensinado.

Vamos lembrar que Russell publicou o ensaio em 1932: a Segunda Guerra ainda estava a anos de começar, os Estados Unidos ainda não tinham assumido a posição geopolítica e econômica que têm no mundo, a indústria era o que movia a economia e a tecnologia de comunicação mais avançada era o telefone — as chamadas intercontinentais estrearam cinco anos antes. Imagine o que escreveria Russell se conhecesse o atual trabalho de qualquer lugar a qualquer hora e a cultura tóxica do empreendedorismo que domina o LinkedIn.

O sujeito que trabalhou enormemente e cujo trabalho continua até hoje como base de diferentes campos do pensamento humano é categórico:

Descanso é essencial para a civilização e em tempos antigos para que o descanso de poucos fosse possível eram necessário o trabalho de muitos. Mas seus trabalhos eram valiosos, não porque o trabalho é bom, mas porque o descanso é bom. E com as técnicas de produção modernas, seria possível distribuir o descanso justamente sem machucar a civilização. […] O uso sábio do descanso, devemos conceder, é produto da civilização e da educação. Um homem que trabalhou longas horas toda sua vida ficará entediado se se tornar subitamente ocioso. Mas sem uma quantidade considerável de descanso um homem é privado de muitas das melhores coisas da vida. Não existe mais razão para que a maior parte da população sofra desta privação. Só um ascetismo tolo, geralmente vicário, nos faz insistir em trabalhar em excesso agora que a necessidade não existe mais.

A essência segue valendo, 91 anos depois.

Décadas adiante, um outro filósofo europeu voltou ao tema, dessa vez com uma definição que resvala em um ponto bem comum hoje. Em 1990, a editora da Universidade de Columbia compilou no livro Negotiations, ensaios escritos pelo filósofo francês Gilles Deleuze entre 1972 e 1990. Um deles diz o seguinte:

Nós às vezes seguimos a vida como se as pessoas não pudessem se expressar. Na verdade, elas estão sempre se expressando. […] O rádio e a televisão espalharam este espírito para todo lugar e estamos mergulhados em conversas sem sentido, quantidades imensas de palavras e imagens. A estupidez nunca é cega ou muda. Então o problema não é que as pessoas se expressem, mas encontrar pequenos espaços de solitude e silêncio nos quais eles podem eventualmente encontrar algo a dizer. Forças repressivas não impedem as pessoas de se expressarem, mas, ao contrário, as forçam. Que alívio não ter nada a dizer, o direito de dizer nada, porque só aí existe a chance de encontrar a cada vez mais rara coisa que vale a pena ser dita. A praga que nos cerca hoje não é o bloqueio da comunicação, mas colocações sem sentido.

Tenho para mim que a frase do Deleuze não foi escrita para a comunicação mediada pela internet — vide a janela temporal da compilação de ensaios —, mas é incrível como ela se encaixa perfeitamente no atual estado da sociedade. A frase, apontada no livro da Jenny Odell sobre não fazer nada, se conecta perfeitamente com um outro ponto que é a antítese da tecnologia: a tradição.

Várias religiões têm o conceito do Sabbath, um dia de descanso que deve ser dedicado à meditação religiosa e onde não se deve trabalhar. No judaísmo, o Sabbath é observado da noite de sexta-feira à noite de sábado. Para os católicos, é no domingo. Variações do mesmo conceito, sob diferentes alcunhas, podem ser observadas em outras religiões também. Vamos lembrar que o descanso é tão fundamental que até Ele (em caixa alta) descansou após criar o mundo. Gênesis 2:2:

Pelo sétimo dia, Deus tinha terminado o trabalho que vinha fazendo; então no sétimo dia, ele descansou de todo seu trabalho.

Não é a única menção à importância do descanso na Bíblia: “Lembra-te do dia de sábado e guarda-o santo” (e variações do texto, segundo a edição da Bíblia ou da Torá) é um dos Dez Mandamentos.

Uma das melhores explicações sobre o conceito caiu na minha mão por uma dessas enormes coincidências da vida. Dias antes de eu entrar nas minhas férias descobri a entrevista que o Ezra Klein fez com a jornalista norte-americana Judith Shulevitz, autora do livro The Sabbath world (sem edição no Brasil). A entrevista é longa e eu te aconselho a ouvir se o assunto descanso te interessa. Abre aspas para a Shulevitz:

A forma rabínica tradicional de explicar (o Sabbath) é que existem uma série de regras — de um tipo de trabalho que você não faz já que esse tipo de trabalho está agindo sobre o mundo. E o Sabbath é um momento em que você deve parar de agir sobre o mundo. Você deve parar de fazer coisas para construir coisas. Você deve deixar o mundo descansar, assim como você.

Independente da sua inclinação religiosa, me surpreende o contraste entre o moderno e o tradicional. Como o segundo, potencialmente encarado como radical por gente que não segue o dogma, acabou virando um potencial antídoto para os exageros trazidos pelo primeiro.

A ideia da Shulevitz, de deixar tanto o mundo como você descansarem, tem reaparecido há semanas na minha cabeça. É o freio de arrumação necessário para ajudar a entender a quantidade de tarefas, culpas, cobranças e frustrações que carregamos sem perceber, a lista enorme de processos rodando ao mesmo tempo na sua cabeça, se formos fazer uma metáfora computacional5. Há um enorme perigo em se colocar numa situação onde você não percebe uma saída. Da onde você não consegue parar. A base do burnout é ficar preso na impressão de trabalho — real ou projetada. O grande perigo de encarar o descanso como luxo é encarar a sensação de esgotamento como o normal, como rotina. E estar cansado é um dos piores momentos para tomar decisões — assim como quando você bebeu demais, está com fome, desesperado, com frio…

O cansaço também te afasta do que você é, dos seus gostos, seus interesses, suas vontades, o que te dá tesão. Tudo isso vira uma massaroca amorfa frente à necessidade urgente de — e a relutância em — parar. É um pêndulo: você precisa desesperadamente, mas você mesmo é incapaz de ver, bonito e bonita. Essa massaroca composta por prazos e uma sensação constante de estar atrasado, devendo, em falta, soterra também o desejo, o tesão em fazer o que você faz profissionalmente. Está achando esse papinho kombucha de romã demais? Ainda é difícil abrir mão da paranoia da produtividade? Então entenda que descansar é uma forma de voltar a ser produtivo ao trocar aquela sensação de obrigação pelo reencontro com a criatividade.

Isso quer dizer que as horas de folga precisam ser criativas? Não necessariamente. A corrente encabeçada pelo Domenico de Masi e seu best-seller homônimo pode ser um caminho, mas não está escrita na pedra. Você pode tranquilamente ficar horas olhando pro céu sem qualquer expectativa. Agora deve ser muito difícil. Mas os resultados são excelentes.

A gente falou muito em teoria. Tentemos falar na prática. Parafraseando um dos melhores livros do Drummond, ler ou ouvir sobre descanso talvez não seja a melhor forma de praticá-lo. Descansar só se aprende descansando. O que eu espero é que esses minutos até agora sirvam como um empurrão para o reconhecimento da importância da folga.

Existem incontáveis guias práticos6 que usam, em maior ou menor grau, a lógica da meditação para quebrar as inércias e te fazer redescobrir o relaxamento. Até mesmo no Tecnocracia a gente já falou sobre isso — o episódio #41 tem o título literal “Manual prático para retomar sua atenção do calabouço das redes sociais”. Estão lá um caminho bastante prático para compartimentalizar as horas de trabalho e prazer, a premissa do Carl Newport no livro Trabalho focado de que a atenção, tal qual seu bíceps, é um músculo e precisa ser treinada, o afastamento do fluxo constante e prejudicial de histeria e raiva das redes sociais e sua substituição pelo contato com a beleza em diferentes formatos, um mínimo de cinco minutos de meditação por dia… Retomar a atenção é também uma forma para abrir espaço na cabeça para, entre tantas coisas, descansar. Se você não achar este guia bom, sem problema: existem centenas online.

Na reportagem da Psyche, Alex Soojung-Kim Pang traz alguns pontos de atenção importantes: estabelecer e, principalmente, respeitar limites claros entre o que é trabalho e o que é vida pessoal, tratar descanso como uma habilidade a ser melhorada, não ignorar sonecas e horas de sono profundo, estabelecer um “descanso profundo” e encorajar outras pessoas a descansarem contigo.

Definir os limites parece ser a dica fundamental: descansar exige um esforço de definir horas em que você veta da sua cabeça qualquer preocupação profissional. Não é fácil no começo. Observe suas horas livres. Observe se elas existem e, se sim, no que você as dedica. É muito fácil estar com a cabeça livre e automaticamente sua atenção ir em direção às tretas de trabalho, o funcionário que precisa melhorar, a proposta a ser formulada, o que você deve à equipe de design, as contas do próximo ano… É por isso que eu tenho certeza que navegar por redes sociais não é descanso — você ainda vai estar preso àquela nova obrigação de projeção e personagem que a Jenny Odell explicou no livro dela.

Descanso bom de verdade funciona como um rompimento do estado mental onde você está, uma área nova da cabeça a ser explorada sem muitos indícios daquela torrente contínua de preocupações, paranóias, planos práticos. É difícil explicar em palavras, mas, quando ela vem, é moleza reconhecê-la.

Determinadas atividades, com certeza, conseguem te arrancar dessa neurose de produtividade e te colocar num estado de serenidade, relaxamento. Talvez você já saiba, talvez precise descobrir. Se você estiver tendo dificuldade para descobrir, não tenha vergonha de buscar ajuda profissional. Às vezes a dificuldade de parar é reflexo de uma outra dor sem relação com o trabalho. Falar ajuda, tomar remédio ajuda. Se quiser um exemplo prático para te ajudar a pensar na questão: uma coisa que funciona muito bem para mim é alongamento. Não tem preocupação de trabalho que sobreviva àquele músculo de trás da coxa queimando. Fora isso, você marca uma das caixinhas para envelhecer com saúde: ter um corpo forte e flexível.

Por fim, existem poucas coisas no mundo que exigem sua atenção total por horas a fio sob o risco de graves consequências. É bem provável que o que você faz não é uma dessas coisas — você não está fazendo um transplante de coração agora7. Dá tempo de parar e relaxar. Quase nada é tão urgente que você não possa folgar.

Descanso não é luxo. Você não precisa ganhar o direito de tê-lo. Descanso é necessidade. Você precisa dele para ser você. Por isso mesmo que é fundamental trocar o verbo conjugado ao se pensar em descanso do “merecer” para o “precisar”. Repetindo o fim de todas as temporadas do Tecnocracia no começo desta: vai descansar. Mas de verdade.

Exatamente pelo ano que foi 2022, eu vou descansar mais em 2023. A gente volta quando o próximo episódio estiver pronto.

Pintura do topo: “Jovem adormecida” de Pinto Bandeira (1901).

  1. E eu tenho plena consciência de que para entender algo você precisa fazer coisas, o que desmonta a premissa original.
  2. Dois mil e vinte e dois não vai sair da gente tão cedo.
  3. Deixar roupa em algum lugar pela preguiça de pendurar parece ser um motivo desse episódio também.
  4. Nota do tradutor: aqui eu abrasileirei, já que a versão nacional é bastante semelhante à britânica (“Satan finds some mischief still for idle hands to do”), ainda que menos elegante.
  5. Esse ainda é um podcast que entra na categoria tecnologia, né?
  6. Não o podcast homônimo da casa.
  7. Pelo menos, eu espero que não.

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