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A guerra de tronos e os paquidermes ilhados
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Antes de partirmos, todos entendemos que as férias poderão elevar a um estatuto lendário as nossas existências neuróticas. Faz parte das fantasias pequeno-burguesas ir tracejando nalgum canhenho as metas secretas da vaga peregrinação que cada um se promete. Para não desiludirmos o quadro que nos envolve, também fomos ver essa coisa do verão, esse negócio familiar que impinge desde há décadas, e com indesmentível sucesso, retratos e molduras que, passados anos, têm essa capacidade de apanhar-nos tão maltratados que nos pomos a remexer no passado e acabamos embevecidos diante de um tempo que se fixou nas leves linhas de um desenho, servindo estas à composição de uma elegante melancolia heráldica. Fomos ver o mar, que não quis engolir-nos, sentindo que o enjoo que trazíamos era demasiado pesado até para ele. Regressamos, assim, a estas lides maldosas como dois enjeitados, com a fenda ou a racha do carácter ainda mais pronunciada. E vimos a fazer aquela fita de quem virara costas, com o desejo de se reformar, limpar a sujeira debaixo das unhas da alma, recolher-se nalgum grupo de canto coral, e logo quando queríamos deixar a carreira de perversidade para trás, eles puxam-nos de volta. Se pensarmos nisso, é curioso como as Histórias da Literatura nos seus anais quase sempre passam ao lado das formas de corrupção mundana que marcam cada um dos períodos, quase nem se acham registos da maledicência, da bisbilhotice, da pretensão ou do calculozinho, não há compêndios que nos permitam relativizar o desgosto diante do ranço que caracteriza estes dias permitindo-nos colher antecedentes escabrosos, exemplos da desonestidade, do fanatismo estúpido ou vingativo de outras épocas. Como assinalou Max Aub, “nos documentos nunca há filhos da puta. E Deus sabe que eles são incontáveis". Por cá, tudo se confunde. Vivemos cercados de uma gente que põe e dispõe segundo as suas conveniências. Já traficam indistintamente a realidade e as superstições, promovem juízos absurdos, sempre subjugados às lógicas do consumo. Qualquer agremiação de nabos tem o seu quartel, e em vez de manter em estado de anarquia o âmbito dos seus desejos, deliram com hierarquias, com esses títulos sempre infinitamente insignificantes. A mesquinhez toma conta das suas performances, entregando-se a uns dramas caricatos na ânsia de se representarem como altas dignidades. Se em tempos podia contar-se com um número apreciável de escribas que não queriam nada com as distinções ou os snobismos bacocos que caracterizam o campo cultural e quem lá anda, que lançavam o seu desafio e se borrifavam nas corridas de lebres, rindo dos que buscam por todos os meios entronizar-se, hoje são estes que se vêem denunciados e sujeitos a isolamento. Certa vez, Pierre Bourdieu exprimiu da forma mais eloquente a sua desilusão diante dos chamados intelectuais... “Quando disse, no início, que esperava que o senhor [Günther Grass] fosse 'abrir a boca', é porque penso que as pessoas consagradas são as únicas capazes, em certo sentido, de 'romper o círculo'. Mas, infelizmente, consagram-nas porque estão quietas e silenciosas e para que assim permaneçam — e há muito poucas que utilizem o capital simbólico conferido pela consagração para falar, falar simplesmente, e também para fazer ouvir as vozes daqueles que não a têm.” Estamos conversados em relação a esses que adoram vir para este território para exibir a exemplaridade dos seus princípios e valores éticos. Na outra margem, está essa ideia da poesia que traz com ela uma forma de sermos compensados das misérias que sofremos. Se durante uns tempos a burguesia estabelecia em favor dos artistas de vanguarda uma procuração no sentido de exprimirem um protesto neste ou naquele sentido, delegando neles essas tarefas de subversão formal, também para se desobrigar de qualquer alteração das regras do jogo, hoje, o mercado tornou-se essa terrível abstracção que permite a qualquer um redigir páginas de argumentação caótica para justificar seja o que for. Em tempos chegou a exigir-se da poesia que viesse decretar o fim do dinheiro. Mas esse tipo de audácias foram perdendo a vez, e introduziu-se essa forma de suspeita automática diante de tudo o que possa vir a cambalear por aí com aquele cheiro das naturezas implausíveis. Chegava a altura de cada um dizer adeus às selecções absurdas, sonhos de abismo, rivalidades, paciências exaustivas, galope das estações, ordem artificial das ideias. Serviram-se de um século inteiro como exemplo para que abdicássemos da rampa do perigo, da ideia de haver tempo para tudo. "Dêem-se ao menos ao trabalho de pôr a poesia em prática", clamava Breton. Acrescentando: "a nós, que vivemos dela, cabe-nos fazer prevalecer o seu mais amplo relato". Mas, entretanto, mesmo o surrealismo já parece ter sido inteiramente neutralizado, sendo alvo das maiores suspeitas, denunciado pela moral dos nossos sindicatos do pragmatismo. Agora, também se espera que o Estado seja transformado numa gigantesca estrutura de cuidados paliativos, uma vez que os espíritos já nascem reformados, tendo abdicado de todas as pretensões de transformar o mundo, mudar de vida. Hoje, todos defendem os apoios à cultura, os subsídios à criação, as verbas para alargar esse imenso cemitério em que a literatura se viu transformada. E, no entanto, esses mesmos que fazem as suas vidas depender de uma suposta resistência aos humores dos mercados, depois nunca reconhecem o fracasso generalizado da cultura que se produz, que prefere entreter a abalar uma vida social cada vez mais imóvel e sem saídas, refocilando nesse dogmatismo das comunidades pequenas, reforçando os mecanismos de vigilância, as repressões, transmitindo apenas amargura e desconforto, responsabilizando os outros por esse inferno que resulta da insuficiência da acção (ou seja, da própria poesia em apontar um caminho) de forma a confrontar uma determinada situação.
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Antes de partirmos, todos entendemos que as férias poderão elevar a um estatuto lendário as nossas existências neuróticas. Faz parte das fantasias pequeno-burguesas ir tracejando nalgum canhenho as metas secretas da vaga peregrinação que cada um se promete. Para não desiludirmos o quadro que nos envolve, também fomos ver essa coisa do verão, esse negócio familiar que impinge desde há décadas, e com indesmentível sucesso, retratos e molduras que, passados anos, têm essa capacidade de apanhar-nos tão maltratados que nos pomos a remexer no passado e acabamos embevecidos diante de um tempo que se fixou nas leves linhas de um desenho, servindo estas à composição de uma elegante melancolia heráldica. Fomos ver o mar, que não quis engolir-nos, sentindo que o enjoo que trazíamos era demasiado pesado até para ele. Regressamos, assim, a estas lides maldosas como dois enjeitados, com a fenda ou a racha do carácter ainda mais pronunciada. E vimos a fazer aquela fita de quem virara costas, com o desejo de se reformar, limpar a sujeira debaixo das unhas da alma, recolher-se nalgum grupo de canto coral, e logo quando queríamos deixar a carreira de perversidade para trás, eles puxam-nos de volta. Se pensarmos nisso, é curioso como as Histórias da Literatura nos seus anais quase sempre passam ao lado das formas de corrupção mundana que marcam cada um dos períodos, quase nem se acham registos da maledicência, da bisbilhotice, da pretensão ou do calculozinho, não há compêndios que nos permitam relativizar o desgosto diante do ranço que caracteriza estes dias permitindo-nos colher antecedentes escabrosos, exemplos da desonestidade, do fanatismo estúpido ou vingativo de outras épocas. Como assinalou Max Aub, “nos documentos nunca há filhos da puta. E Deus sabe que eles são incontáveis". Por cá, tudo se confunde. Vivemos cercados de uma gente que põe e dispõe segundo as suas conveniências. Já traficam indistintamente a realidade e as superstições, promovem juízos absurdos, sempre subjugados às lógicas do consumo. Qualquer agremiação de nabos tem o seu quartel, e em vez de manter em estado de anarquia o âmbito dos seus desejos, deliram com hierarquias, com esses títulos sempre infinitamente insignificantes. A mesquinhez toma conta das suas performances, entregando-se a uns dramas caricatos na ânsia de se representarem como altas dignidades. Se em tempos podia contar-se com um número apreciável de escribas que não queriam nada com as distinções ou os snobismos bacocos que caracterizam o campo cultural e quem lá anda, que lançavam o seu desafio e se borrifavam nas corridas de lebres, rindo dos que buscam por todos os meios entronizar-se, hoje são estes que se vêem denunciados e sujeitos a isolamento. Certa vez, Pierre Bourdieu exprimiu da forma mais eloquente a sua desilusão diante dos chamados intelectuais... “Quando disse, no início, que esperava que o senhor [Günther Grass] fosse 'abrir a boca', é porque penso que as pessoas consagradas são as únicas capazes, em certo sentido, de 'romper o círculo'. Mas, infelizmente, consagram-nas porque estão quietas e silenciosas e para que assim permaneçam — e há muito poucas que utilizem o capital simbólico conferido pela consagração para falar, falar simplesmente, e também para fazer ouvir as vozes daqueles que não a têm.” Estamos conversados em relação a esses que adoram vir para este território para exibir a exemplaridade dos seus princípios e valores éticos. Na outra margem, está essa ideia da poesia que traz com ela uma forma de sermos compensados das misérias que sofremos. Se durante uns tempos a burguesia estabelecia em favor dos artistas de vanguarda uma procuração no sentido de exprimirem um protesto neste ou naquele sentido, delegando neles essas tarefas de subversão formal, também para se desobrigar de qualquer alteração das regras do jogo, hoje, o mercado tornou-se essa terrível abstracção que permite a qualquer um redigir páginas de argumentação caótica para justificar seja o que for. Em tempos chegou a exigir-se da poesia que viesse decretar o fim do dinheiro. Mas esse tipo de audácias foram perdendo a vez, e introduziu-se essa forma de suspeita automática diante de tudo o que possa vir a cambalear por aí com aquele cheiro das naturezas implausíveis. Chegava a altura de cada um dizer adeus às selecções absurdas, sonhos de abismo, rivalidades, paciências exaustivas, galope das estações, ordem artificial das ideias. Serviram-se de um século inteiro como exemplo para que abdicássemos da rampa do perigo, da ideia de haver tempo para tudo. "Dêem-se ao menos ao trabalho de pôr a poesia em prática", clamava Breton. Acrescentando: "a nós, que vivemos dela, cabe-nos fazer prevalecer o seu mais amplo relato". Mas, entretanto, mesmo o surrealismo já parece ter sido inteiramente neutralizado, sendo alvo das maiores suspeitas, denunciado pela moral dos nossos sindicatos do pragmatismo. Agora, também se espera que o Estado seja transformado numa gigantesca estrutura de cuidados paliativos, uma vez que os espíritos já nascem reformados, tendo abdicado de todas as pretensões de transformar o mundo, mudar de vida. Hoje, todos defendem os apoios à cultura, os subsídios à criação, as verbas para alargar esse imenso cemitério em que a literatura se viu transformada. E, no entanto, esses mesmos que fazem as suas vidas depender de uma suposta resistência aos humores dos mercados, depois nunca reconhecem o fracasso generalizado da cultura que se produz, que prefere entreter a abalar uma vida social cada vez mais imóvel e sem saídas, refocilando nesse dogmatismo das comunidades pequenas, reforçando os mecanismos de vigilância, as repressões, transmitindo apenas amargura e desconforto, responsabilizando os outros por esse inferno que resulta da insuficiência da acção (ou seja, da própria poesia em apontar um caminho) de forma a confrontar uma determinada situação.
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