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A China e o nosso espectadorismo distante. Uma conversa com Tiago Nabais

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Hoje o mundo não sabe estar quieto. Em vez de o trânsito ser de ordem cultural, o regime da competição introduziu um elemento de constante disputa, conflitos de influência e poder. As nações procuram extravasar e invadir-se, e é próprio desse quadro a ideia do revisionismo, a forma como o esforço de subsumir o passado leva a que os nossos juízos procurem consumir toda a história anterior. Talvez pior do que o roubo de bens culturais de outras culturas e povos é essa forma de traficar os objectos culturais, sejam eles a iconografia religiosa, a pornografia ou Das Kapital, submetidos a um sistema de equivalência, organizando tudo segundo valores monetários. Aos poucos toda a ideia de cultura reverte para a ideia de museu. Como nos diz Mark Fisher, "se percorrermos o British Museum, onde é possível vermos objectos arrancados aos seus mundos da vida e reunidos como se no convés de uma nave espacial do Predador, ficaremos com uma imagem desse processo em curso". "Com a conversão de práticas e rituais em objectos meramente estéticos, as crenças de culturas anteriores vêem-se objectivamente ironizadas, transformadas em artefactos." Em seu entender, a grande potência do capitalismo é ser essa entidade monstruosa e infinitamente plástica, capaz de metabolizar e absorver tudo com que entre em contacto. Este efeito aplicado à história leva a um tal grau de saturação desses elementos que uma época assume "um perigoso espírito de ironia em relação a si mesma", como escreveu Nietzsche, "e subsequentemente ao espírito ainda mais perigoso do cinismo", no qual, "a palpação cosmopolita", um espectadorismo distante, na formulação de Fisher, vem substituir o empenhamento e o envolvimento. Demasiada realidade adoece-nos os sentidos, uma vez que já não somos capazes de reconhecer as diferenças e as propriedades que conferem autonomia e respeitam a estranheza de umas peças de um puzzle face às de outro. É como se em vez de montar um puzzle de forma paciente, respeitando a integridade da sua vizão e a ordem que lhe é própria, fôssemos usar cola ou argamassa, sem ter em atenção cada uma das peças. Mais valia sentir diante dessas realidades distantes um vago fascínio, apenas impressões algo desconexas, peças desirmanadas, que não nos confortam com a ilusão de uma perspectiva clara e unitária. Mais vale ter aquele sentimento do aldeão de Tonino Guerra, que, no segundo canto do extraordinário álbum de lembranças a que ele chamou "Mel", nos diz isto: "Deitei fogo a páginas de livros, a calendários/ e mapas. Para mim a América/ já não existe, a Austrália igualmente,/ a China na minha cabeça é uma fragrância,/ a Rússia uma alva teia de aranha/ e a África o sonho de um copo com água." Mais vale uma ignorância humilde e respeitosa, do que presumir que se sabe alguma coisa, que se viaja e viu fosse o que fosse porque um tipo se meteu num avião e aterrou lá ansioso, integrando uma dessas expedições famintas por pedaços da História, que vão por ali disparando a objectiva sobre uns quantos monumentos de forma a provarem a si mesmos e, sobretudo, aos outros que estiveram lá. Como nos lembra Pascal Quignard, em latim, vigiar do alto de um lugar um qualquer sinal de morte para até ele se precipitar como uma ave necrófaga diz-se especular. No fundo, é só isso o que servimos aos turistas que nos assediam nestas cidades exaustas: sinais de morte. Cumprimos o nosso papel como parte de um cenário moribundo. Em vez da arrogância de absorver totalidades, mais vale encantar-se por um elemento de composição qualquer, animar-se com esses cacos que nunca nos poderiam servir como indicações para a plenitude seja do que for. Seria mais útil escrever-se uma história apócrifa da porcelana, como fez Ivan Krustev, em lugar de depredar a agonia daqueles que apenas surgem ao fundo, nos postais dos turistas. "A paixão pela porcelana, Europa do século XIX./ Serviços, elefantes e copos./ O mundo é vasto e bom,/ Distinto, frágil, aristocrático./ E há algo para além disto,/ O horizonte ergue-se transparente./ A América é só uma costa./ E a China um gato preto./ Montesquieu continua a redigir/ As suas cartas sobre filósofos./ Os eruditos usam perucas/ E as senhoras - flores./ Os soberanos não são dementes/ E, no entanto, não são grandes inteligências./ Nenhum fantasma persegue a Europa/ E o amor é fantasmagórico./ Infelizmente os poetas são de salão,/ Felizmente os seus poemas não./ E a liberdade, como um jarro,/ Está no centro do pensamento./ A nova história começa/ Com fragmentos de porcelana./ Enterrada em pequenos elefantes brancos/ Deixamos a idade da Razão para trás." Neste episódio fomos beber o que podíamos à experiência de Tiago Nabais, investigador e tradutor de autores chineses como Yu Hua e Yan Lianke, alguém que passou uma década na China, a ensinar português em várias universidades, e que, sem poder levar-nos lá, deu-nos antes uma boleia e fez de guia para nos permitir compreender melhor esse teatro de sombras chinesas que persiste nas suas memórias.

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