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Os devoradores de épocas. Uma conversa com António Hess

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"Neste tempo que se tornou uma ciência, um conhecimento criminoso da vida" (André Roy), seria preciso resgatar de novo o sentido original, o ímpeto nascente, junto às fontes, e não ficarmos remetidos a uma cultura de remastigação, e de reproduções inertes, ao ponto de vivermos imersos em ecos de ecos, num ruidoso enredo que, sem a menor clareza de ideias, apenas exprime impotência. Alguém mais vincava como "todos os amantes partilham a sua infância e são donos uns dos outros". Mas se entre nós alguém notou que estava na hora de chamar o amor para a mesa dos canibais, disso só ficou a ideia de que já estaríamos encaminhados no sentido do progresso se os canibais começassem a comer com faca e garfo. Entretanto, afastaram e perseguiram os canibais e todos os famintos, e a cultura ficou-se pelos bons modos a observar à mesa e pelos serviços de loiça e faqueiros. Perdemos o caminho, o ritmo, o assobio que nos instigava, e essas artes de transmissão, de revigoramento dos exemplos que nos precederam, e se rodeamos os clássicos de um culto esterilizante, é natural que a poesia portuguesa dos últimos tempos, sobretudo aquela que mais se faz exibir, não tenha nada para dizer, uma vez que já nasce para se entregar ao luto, imita os bustos e fez da arte do epitáfio outra indústria de slogans. Considerando a forma como o público celebra as suas eucaristias com corpos mortos, os poetas, como notou Ezra Pound, aspiram a ser iguais às ostras: querem ser engolidos vivos. Seria preciso reatar esse sentido que derrota a ridícula noção do tempo como construtor de distâncias ou barreiras intransponíveis. Os clássicos são esses amantes que partilham a sua infância, e são eternos contemporâneos. Mas as crenças que presidem às nossas orientações estéticas são todas de ordem mais ou menos miserabilista, suplicantes, patéticas. Deveríamos recuperar esses "Versos de Guerra" que nos deixou o melhor dos artífices da palavra: "Ó poetas de um tostão, acalmai-vos! –/ Pois vós tendes nove anos em cada dez/ Para andar aos tiros por glória –/ com pistolas de brincar;// Acalmai-vos, deixai os soldados tomar os seus lugares,/ E não tenteis sacar a vossa glória postiça/ Das ruínas de Louvain,/ E muito menos da fumegante Liège." Se vos fazemos a guerra na cultura é precisamente para não termos de a levar para outro lado. Hoje querem fazer da arte mais outro recreio do mercado, emulando as suas dinâmicas especulativas, esse parasitismo inconsequente. Mas diante da ignorância e desinteresse pelas grandes obras do espírito e pelo tumultuoso percurso que foram desenhando as nossas tradições, é preciso uma vez mais reabilitar a própria função da cultura, esse princípio de ordenação do conhecimento de modo a que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo com obras ou produtos obsoletos. No fundo, só os amantes têm pressa pois só eles sabem, como notou Esopo, que "há toda a diferença do Mundo entre correr para apanhar algo e correr para salvar a pele". António Hesse, nosso convidado neste episódio, tem tido a crueza de retomar o sentido de urgência de uma literatura exaltante e que se elaborava através de manifestos. Naquele que ele tem distribuído, lembra-nos a importância de "assumir que o desespero continua a ser dínamo impreterível para os grandes transgressores – ladrões, vilões, desgraçados e iluminados". E o amor clássico é tudo menos essa "pressa de moribundo a testamentar antes que o cacem". Nesta conversa, sob o signo ou a configuração astrológica que Pound nos serviu, quisemos refazer esse mapa para as maiores urgências, aceitando que este é um tempo em que o mais difícil é elevar a vida a esse território invisível e imortal onde ainda soam as grandes passadas que foram dadas há séculos ou milénios como há segundos. Com estrondo, gerando sérios confrontos e desacatos. Toda a ordem nasce de um breve momento de tréguas antes de alguma outra coisa nos precipitar de novo numa guerra onde o que mais importa é estar nela com o mais alto grau de discernimento. Esse campo de batalha é-nos oferecido pela grande literatura, que Pound define como os casos em que a linguagem se vê carregada de significado no máximo grau possível. E para nos livrarmos desta cultura de mastigadores ruidosos que quando acabam de deglutir não têm nada mais para acrescentar, para contrariar os efeitos devastadores desta era de ciência e abundância, ele lembra-nos que "o amor e a reverência pelos livros como tais, próprios de uma época em que nenhum livro era duplicado até que alguém se desse ao trabalho de copiá-lo à mão, obviamente, já não respondem 'às necessidades da sociedade ou à preservação do saber". Simplesmente, sufocamos debaixo de todo o lixo que é posto à nossa disposição pelo tipo de ignorantes que, por não terem a menor perspectiva sobre o passado, estão condenados a repetir de forma inane o que já foi dito com um rasgo superior em tempos em que cada gesto era mais difícil e por isso exigia muito mais ímpeto. "Precisa-se com urgência de uma boa poda, se é que o Jardim das Musas pretende continuar a ser um jardim", conclui Pound. E para levar adiante esta prodigiosa memória e o seu desafio, contámos com o entusiasmo deste poeta e tradutor que desceu como um bárbaro à capital, e se apresentou como um "suave menestrel da Beira, atropófago, semiótico, acrópologo da maledicência", e ainda "humano por definição, místico por vocação", alguém que desde 2017 vem instigando um culto intitulado Hopentoten.
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Perdemos o caminho, o ritmo, o assobio que nos instigava, e essas artes de transmissão, de revigoramento dos exemplos que nos precederam, e se rodeamos os clássicos de um culto esterilizante, é natural que a poesia portuguesa dos últimos tempos, sobretudo aquela que mais se faz exibir, não tenha nada para dizer, uma vez que já nasce para se entregar ao luto, imita os bustos e fez da arte do epitáfio outra indústria de slogans. Considerando a forma como o público celebra as suas eucaristias com corpos mortos, os poetas, como notou Ezra Pound, aspiram a ser iguais às ostras: querem ser engolidos vivos. Seria preciso reatar esse sentido que derrota a ridícula noção do tempo como construtor de distâncias ou barreiras intransponíveis. Os clássicos são esses amantes que partilham a sua infância, e são eternos contemporâneos. Mas as crenças que presidem às nossas orientações estéticas são todas de ordem mais ou menos miserabilista, suplicantes, patéticas. Deveríamos recuperar esses "Versos de Guerra" que nos deixou o melhor dos artífices da palavra: "Ó poetas de um tostão, acalmai-vos! –/ Pois vós tendes nove anos em cada dez/ Para andar aos tiros por glória –/ com pistolas de brincar;// Acalmai-vos, deixai os soldados tomar os seus lugares,/ E não tenteis sacar a vossa glória postiça/ Das ruínas de Louvain,/ E muito menos da fumegante Liège." Se vos fazemos a guerra na cultura é precisamente para não termos de a levar para outro lado. Hoje querem fazer da arte mais outro recreio do mercado, emulando as suas dinâmicas especulativas, esse parasitismo inconsequente. Mas diante da ignorância e desinteresse pelas grandes obras do espírito e pelo tumultuoso percurso que foram desenhando as nossas tradições, é preciso uma vez mais reabilitar a própria função da cultura, esse princípio de ordenação do conhecimento de modo a que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo com obras ou produtos obsoletos. No fundo, só os amantes têm pressa pois só eles sabem, como notou Esopo, que "há toda a diferença do Mundo entre correr para apanhar algo e correr para salvar a pele". António Hesse, nosso convidado neste episódio, tem tido a crueza de retomar o sentido de urgência de uma literatura exaltante e que se elaborava através de manifestos. Naquele que ele tem distribuído, lembra-nos a importância de "assumir que o desespero continua a ser dínamo impreterível para os grandes transgressores – ladrões, vilões, desgraçados e iluminados". E o amor clássico é tudo menos essa "pressa de moribundo a testamentar antes que o cacem". Nesta conversa, sob o signo ou a configuração astrológica que Pound nos serviu, quisemos refazer esse mapa para as maiores urgências, aceitando que este é um tempo em que o mais difícil é elevar a vida a esse território invisível e imortal onde ainda soam as grandes passadas que foram dadas há séculos ou milénios como há segundos. Com estrondo, gerando sérios confrontos e desacatos. Toda a ordem nasce de um breve momento de tréguas antes de alguma outra coisa nos precipitar de novo numa guerra onde o que mais importa é estar nela com o mais alto grau de discernimento. Esse campo de batalha é-nos oferecido pela grande literatura, que Pound define como os casos em que a linguagem se vê carregada de significado no máximo grau possível. E para nos livrarmos desta cultura de mastigadores ruidosos que quando acabam de deglutir não têm nada mais para acrescentar, para contrariar os efeitos devastadores desta era de ciência e abundância, ele lembra-nos que "o amor e a reverência pelos livros como tais, próprios de uma época em que nenhum livro era duplicado até que alguém se desse ao trabalho de copiá-lo à mão, obviamente, já não respondem 'às necessidades da sociedade ou à preservação do saber". Simplesmente, sufocamos debaixo de todo o lixo que é posto à nossa disposição pelo tipo de ignorantes que, por não terem a menor perspectiva sobre o passado, estão condenados a repetir de forma inane o que já foi dito com um rasgo superior em tempos em que cada gesto era mais difícil e por isso exigia muito mais ímpeto. "Precisa-se com urgência de uma boa poda, se é que o Jardim das Musas pretende continuar a ser um jardim", conclui Pound. E para levar adiante esta prodigiosa memória e o seu desafio, contámos com o entusiasmo deste poeta e tradutor que desceu como um bárbaro à capital, e se apresentou como um "suave menestrel da Beira, atropófago, semiótico, acrópologo da maledicência", e ainda "humano por definição, místico por vocação", alguém que desde 2017 vem instigando um culto intitulado Hopentoten.
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